FLiP – Ferramentas para a Língua Portuguesa

Gostaria de saber se são correctas as seguintes expressões muito em voga, agora, na comunicação social: "O ainda primeiro-ministro António Costa…" e "O agora Ministro das Infraestruturas…."

Eu julgo que não porque, salvo erro, "AINDA " é um advérbio e não um adjectivo.

2024-04-18T17:32:31, A. A.,

Nas expressões que refere, o ainda primeiro-ministro…, o agora ministro…, os advérbios ainda e agora surgem entre um artigo e um nome, numa posição típica de adjectivo (compare-se, aliás, a proximidade de sentido entre o grupo nominal com advérbio o ainda primeiro-ministro e o grupo nominal com adjectivo o actual primeiro-ministro). Por essa razão, pode parecer que se está na presença de um uso adverbial indevido, pois, tradicionalmente, impera a visão de que um advérbio é “fundamentalmente, um modificador do verbo” (Cunha & Cintra, 1998, p. 537). Obras um pouco mais recentes, no entanto, contemplam uma visão mais alargada da classe adverbial, considerando que “[o] advérbio é uma classe ou categoria de palavras bastante heterogénea e complexa, cuja designação repousa na ideia, ilusória, de que modifica apenas verbos e de que vem geralmente junto deles; na verdade, os advérbios modificam vários tipos de constituintes e podem ocupar posições distintas.” (Mateus et alii, 2003, p. 417). Efectivamente, um advérbio é uma palavra (ou locução) invariável em género e número capaz de modificar vários tipos de elementos, como adjectivos (ex.: As fotos ficaram muito bonitas), verbos (ex.: Eles dançam mal), outros advérbios (ex.: Eles dançam mesmo mal) ou até frases (ex.: Hoje chegaram mais duas encomendasInfelizmente, a notícia é verdadeira).

Na sua definição de advérbio, o Dicionário Terminológico, ferramenta online do ministério da educação português para o ensino básico e secundário, refere explicitamente que alguns advérbios podem modificar grupos nominais, dando como exemplo o advérbio somente na frase “Somente a Joana teria paciência para aquilo“. Exemplo semelhante, “Só o Pedro chegou“, é apresentado por João Costa em O Advérbio em Português Europeu (2008), obra que faz uma descrição do comportamento morfológico, semântico e sintáctico dos advérbios em português europeu. João Costa ressalva, porém, que advérbios que modificam grupos ou sintagmas nominais não modificam nomes, isto é, a modificação ocorre sobre todo o sintagma nominal e não apenas sobre o nome (Costa, 2008, p. 13). O autor refere ainda que “[a]lguns advérbios de localização temporal podem ocorrer internamente aos sintagmas nominais, aparentemente modificando os nomes.” (Costa, 2008, p. 48, sublinhado nosso), salvaguardando que essa possibilidade só ocorre com nomes que designam entidades, cargos ou títulos, dando como exemplos “O então rei de Espanha“ e “O actualmente presidente da associação“. O mesmo facto também já tinha sido apontado para a língua espanhola por Ignacio Bosque, que refere que o substantivo, neste contexto, “designa predicados, geralmente de pessoa, cujo significado está especificamente vinculado a um estado temporal, como ocorre com ocupações, cargos, actividades e outras atribuições que têm limites cronológicos associados” (Bosque 1989, p. 139, tradução nossa).

Na recente Gramática do Português, Eduardo Raposo também faz referência ao uso adverbial aqui em análise, alargando a possibilidade do valor semântico do advérbio e do tipo de nome modificado (Raposo, 2013. p. 1574, sublinhados nossos):
«[…] alguns advérbios, entre os quais um pequeno número com valor semântico temporal ou locativo, podem ocorrer no interior de sintagmas nominais cujo núcleo é um nome eventivo ou denotador de um cargo, função ou profissão, funcionando como adjuntos adverbiais, ainda que de forma limitada (e marginal para alguns falantes), como se ilustra nos seguintes exemplos:

a. [O então catedrático da cadeira de Introdução aos Estudos Linguísticos], o professor Lindley Cintra, foi o presidente do júri.

b. Lá temos de aturar de novo [a sempre solícita secretária].

c. Não tarda muito, [o ainda ministro] vai para a rua.

d. [O jogo {aqui/no Estádio da Luz}] vai ser muito difícil.

e. [A greve {ontem/na semana passada}] teve um sucesso retumbante.»

Pesquisas em corpora e em motores de busca retornam vários exemplos, como alguns listados abaixo, que confirmam as descrições feitas até à data deste fenómeno linguístico. Com efeito, comprova-se o uso pré-nominal de advérbios de tempo (cf. 1-4) predominantemente com nomes que designam profissões, funções, títulos ou outros atributos associados a limites cronológicos, incluindo casos com flexão de género (cf. 1) ou de número (cf. 2). Refira-se também, no mesmo contexto, para além dos advérbios temporais, o uso de advérbios de inclusão (cf. 5) ou de dúvida (cf. 6-8):

1. A hoje ministra das Artes, Ciência, Cultura e Tecnologia acaba de pedir uma indemnização por danos morais.

2. Os então rivais têm agora de trabalhar em conjunto.

3. O grande vencedor foi Jimmy, que encurtou a distância para o sempre líder da lista dos melhores marcadores, o portista Jardel.

4. O protagonismo da outrora sede de concelho.

5. Apesar do entusiasmo pelo novo trabalho, a também empresária não revela o local onde exerce funções.

6. A camisola roxa com o 10 cravado assentava-lhe bem, como assentara à porventura maior lenda do clube: Giancarlo Antognoni.

7. Jair Bolsonaro e Onyx Lorenzoni: o presidente e o quase ex-ministro?

8. O talvez candidato à presidência reafirma seu compromisso nacional em construir um país melhor.

Note-se ainda que, em construções deste tipo, a posição do advérbio é fixa, surgindo sempre entre o artigo e o nome: compare-se a gramaticalidade dessa posição em O ainda primeiro-ministro também reclamou vitória com a agramaticalidade de *O primeiro-ministro ainda também reclamou vitória, por exemplo.

O carácter recente deste tipo de uso adverbial, e potencialmente questionável ou marginal para alguns falantes (como refere Raposo, 2013, p. 1574), parece mais vincado no caso dos advérbios de dúvida, sobretudo quando usados com nomes que não denotam especificamente profissões, funções ou títulos (cf. 9-12):

9. O símbolo mais evidente da porventura afiliação de Manuel Martins Gomes Júnior ao pensamento esotérico está no seu ex-líbris.

10. O banco central sublinha o quase equilíbrio das contas externas.

11. Também como em «Happiness» não faltam as «punch lines» poéticas e as quase lengalengas em constante transmutação interior.

12. Existem decerto boas razões para voltarmos a reflectir sobre a talvez reacção de pânico que esteve na base das tão polémicas alterações.

Considerando o uso adverbial exemplificado sobretudo nas frases de 1-8, bem como a descrição que dele já é feita por gramáticas e por estudos gramaticais, o seu emprego recente não pode ser considerado incorrecto, embora, tal como tudo o que constitui mudança na língua ou em sociedade, possa parecer estranho a alguns falantes ou possa mesmo ser rejeitado por outros. Dada a riqueza da língua, cabe a cada utilizador optar por determinadas palavras ou construções, consoante as suas necessidades, as suas preferências ou o registo de língua pretendido. Neste contexto específico, em caso de dúvida, poderá optar-se pela utilização de um adjectivo aproximado (ex.: o agora/ainda/hoje ministro > o actual ministroo então/outrora ministro > o antigo ministroo quase/porventura/talvez ministro > o eventual ministro).

2024-04-18

Cláudia Pinto

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