O género da palavra
hélice não
é consensualmente registado nas principais obras lexicográficas de referência e
levanta várias questões problemáticas.
O Vocabulário da Língua Portuguesa (Coimbra: Coimbra Editora, 1966), de
Rebelo Gonçalves, considerado uma das referências máximas na lexicografia
portuguesa, regista hélice apenas como substantivo feminino, respeitando
o étimo latino feminino helix, -icis com a seguinte nota em aditamento
“Corrente, mas etimologicamente inexacto, o gén. masc.”.
Já o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira
de Letras (São Paulo: Global, 2009; versão online disponível em:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=23)
classifica a palavra hélice como “s. f. s.2g.”, ou seja, como substantivo
feminino e como substantivo de dois géneros (masculino e feminino).
Por sua vez, o Grande Vocabulário da Língua Portuguesa (Lisboa: Âncora
Editora, 2001), de José Pedro Machado, regista hélice com indicação: “s.
m. e s. f. , este o género preferível”. No entanto, em dicionários coordenados
por este filólogo, como o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Porto:
Amigos do Livro Editores, 1981), a palavra hélice surge classificada como
“s. m. e f.”, classificação válida para todo o verbete. O Dicionário Lello
Prático Ilustrado (Porto: Lello Editores, 2004) segue a mesma opção.
Se não parece haver dúvidas quanto à inexactidão do emprego do masculino por
razões etimológicas (em latim, helix, -icis é feminino, tal como é
feminino o grego héliks, -ikos, de que deriva), o mesmo já não parece
suceder por razões de uso real da palavra. Por essa razão, alguns dicionários
registam hélice como palavra feminina em alguns sentidos, mas masculina
noutros [ver Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das
Ciências de Lisboa (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa / Editorial
Verbo, 2001), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Lisboa: Círculo de
Leitores, 2002) ou Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
(Curitiba: Positivo, 2004), por exemplo]. Outras obras lexicográficas optaram
por registar hélice como palavra feminina mas com indicação de “s. m. ou
f.” em algumas acepções [ver Grande Dicionário Língua Portuguesa (Porto:
Porto Editora, 2004), por exemplo].
Para tornar a questão ainda mais complexa, podemos referir que todos os
dicionários consultados que registam a acepção de hélice relativa à
anatomia, isto é, ao rebordo exterior do pavilhão da orelha, o fazem com a
classificação de substantivo masculino (nesta acepção, a palavra é sinónima de
hélix,
vocábulo com a mesma etimologia, classificado unanimemente pelos dicionários
como substantivo masculino). Esta unanimidade só pode ser explicada por uma
tradição lexicográfica acrítica, pois uma palavra como
antélice,
que se refere também a uma estrutura anatómica da orelha, e que deriva de uma
formação grega, é por sua vez classificada como substantivo feminino.
Pesquisas em corpora e em motores de busca revelam a flutuação de género
de hélice mas, do ponto de vista lexicográfico, esta não pode ser
justificação lógica para registar a palavra como masculina apenas em alguns
sentidos. A ser seguido o critério do uso para justificar a classificação como
palavra feminina ou masculina, ele teria de ser aplicado a todos os sentidos
da palavra, pois há também ocorrências significativas de hélice como
palavra masculina no campo da aeronáutica ou noutros contextos menos marcados do
ponto de vista terminológico (ex.: a/o hélice da ventoinha está partida/o).
Pode dizer-se como conclusão que, face ao exposto acima, o uso de hélice
como substantivo feminino é sempre defensável (excepto no campo da
anatomia, por motivos terminológicos muito específicos). A argumentação de que a
palavra é masculina no domínio da náutica e feminina no da aeronáutica parece
carecer de fundamento lógico, uma vez que se trata do mesmo tipo de mecanismo; a
haver uma oscilação de género, ela ocorre com os vários sentidos da
palavra. |